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matilda — 20 de março de 2018

O SOM E A IMAGEM DO EMPODERAMENTO

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi tem uma frase que diz “se repetimos uma coisa várias vezes, ela se torna normal. Se vemos uma coisa com frequência, ela se torna normal”. Logo, podemos dizer que, se ao longo da história assistimos à submissão da mulher ao homem, com a arte não poderia ser diferente. E isso fica claro, para não dizer explícito, nos videoclipes. A onda de videoclipes se popularizou no Brasil com a chegada da MTV ao país, no ano de 1990. Apesar de haver grandes artistas mulheres, muito antes dessa época, que usavam a nudez como protesto político (a exemplo de Cássia Eller, Maria Bethânia e Rita Lee), o que era de apreciação da grande massa eram grupos de axé e músicas voltadas mais para o pop, que exploravam a sexualização do corpo feminino. Bota a mão no joelho Ainda na década de 1990, era raro ver grupos de diferentes estilos musicais populares serem liderados por uma mulher. Na realidade, enquanto homens cantavam, elas estavam atrás deles realizando as coreografias ou sendo segunda voz. Um bom exemplo disso é o grupo É o Tchan. Em um de seus videoclipes mais famosos, chamado “Dança do Bumbum”, alguns elementos saltam aos olhos: 1- A maior parte do tempo elas são filmadas de costas e focando mais no bumbum delas; 2- As únicas vezes em que as duas dançarinas aparecem de corpo inteiro e de frente para a câmera é com o dançarino masculino no meio delas; 3- Ao longo dos 3min11seg de video, o rosto delas aparece durante apenas 18 segundos. Esse padrão de focar em partes do corpo da mulher foi muito utilizado na época. Outro grande sucesso que seguia esse mesmo modelo foi a Suzana Alves, que interpretava a personagem Tiazinha, com apenas 18 anos. Apontada como um dos maiores símbolos sexuais do final da década de 1990, ela fazia participações em músicas e clipes de alguns cantores como o Vinny, nos quais aparecia para satisfazer os desejos de um homem, não os dela. Em uma entrevista dada por ela a um programa de TV em 2016, ela afirma que até foi feliz por um ano, mas como era muito nova, existia uma crise de identidade em sua vida por conta da Tiazinha.

Susane Alves interpretando a personagem Tiazinha x atualmente. As imagens podem estar sujeitas a direitos autorais.

Nunca é tarde demais para se empoderar Com a virada do século e a democratização da internet, o feminismo que antes era restrito a grupos intelectuais começou a quebrar diversas barreiras de classes sociais, alcançando públicos que nunca antes tiveram contato com esse movimento. Os discursos feministas se popularizaram tanto que tiveram um claro reflexo na música pop, principalmente no funk após os anos 2010. Indo nessa onda, artistas como Tati Quebra Barraco, Karol Conká e Mc Carol têm usado a sensualidade em seus clipes como uma forma de reivindicar amor próprio e direito a livre expressão da mulher. Mesmo com carreiras já consolidadas, diversas artistas do pop que enxergavam outras mulheres como rivais, hoje trazem empoderamento através dos seus trabalhos. A cantora Valesca Popozuda, em seu clipe mais recente, intitulado “Desce um Gin“, usa a prostituição como tema para deixar claro que a mulher pode ser o que ela quiser. Fora isso, ela se apropriou da campanha “Não é Não”, bastante trabalhada no carnaval deste ano, cujo objetivo é deixar claro ao público masculino o direito da mulher de ficar com quem ela bem entender.

Valesca no videoclipe desce o gin. A imagem pode estar sujeita a direitos autorais.

Anitta é um outro nome que pode ser usado como exemplo de mudanças. No início da sua carreira, ela chegou a dar diversas declarações machistas, que eram reproduzidas em seus trabalhos. Em um dos seus primeiros videoclipes, feito para a música “Na Batida”, ocorria uma disputa entre ela e outra mulher por um homem. Claro que, no final, é a Anitta quem conquista o boy. Passado um ano, a cantora deu o passo de gerenciar a sua própria carreira, contando agora com um time bem atualizado com as novas necessidades do mercado. O resultado disso podemos ver no seu mais recente lançamento, o clipe de “Vai Malandra”. Nesse trabalho, a artista traz como cenário principal o Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, e as mulheres que aparecem nele são todas da comunidade, criando uma importante mudança nesse jogo de protagonismo. A diferença para os dias atuais é que, se antes a mulher deveria necessariamente se comportar como objeto sexual, como a Tiazinha e as dançarinas do É o Tchan, hoje ela tem mais conhecimento e força para mostrar e fazer aquilo que ela quer e não o que o homem exige. A professora e bacharel pela Fapcom, Dalila Brito, explica melhor sobre isso: É importante pensarmos de que forma essa mulher se permite livremente mostrar seu corpo. Entendermos que a (imposição) da sensualidade está relacionada ao machismo, mas se essa mulher quiser demonstrar algo que é dela por ela mesma, não há um problema. Partindo dela a liberdade de ser, tanto faz a transmissão ou a linguagem de imagens.” E a mulher negra? Apesar de o Brasil ser um país extremamente miscigenado e ter 54% de sua população negra, segundo dados do IBGE, a época da escravidão deixou marcas profundas na nossa sociedade. Mesmo com a Lei Áurea sendo sancionada há mais de um século, o racismo ainda é evidente e mulheres negras sofrem constantemente também com o estereótipo de serem hiper sensuais e vulgares. Quando artistas afrodescentes como Beyoncé e Rihanna — para ficarmos em exemplos recentes — começaram a se apropriar dessa hipersexualização, elas subverteram a conotação negativa como forma de empoderamento. Tanto que podemos ver outras cantoras se inspirando e construindo uma grande rede sobre a autoaceitação da mulher negra. Segundo a especialista em estudo de gêneros e feminismo Carla Akotirene, esse incentivo começa quando essas mulheres resgatam em sua ancestralidade africana o poder feminino das yabás, entidades de orixás femininos como Oxum e Iemanjá.

Beyoncé no Grammy Awards 2017 e uma representação de Oxum. As imagens podem estar sujeitas a direitos autorais.

Na apresentação do Grammy Awards 2017 muitas pessoas fizeram um paralelo entre a cantora Beyoncé e Oxum – entidade africana deusa do amor e da maternidade – devido aos looks usados por ela. Porém os adornos na cabeça da cantora remetem à coroas de santas católicas, resgatando sua ancestralidade africana, mostrando o lado feminino e sagrado da igreja católica. Sem dúvida, o empoderamento das mulheres negras representa uma importante quebra nos padrões da indústria musical, funcionando para elas como uma saída para gritar com seus corpos as suas vontades.

“A ação de colocar a mulher negra de forma objetificada está relacionado ao racismo, o que causa uma diferença quando tratamos sobre a mulher branca. Mas, com relação aos videoclipes, hoje penso que se relaciona mais como uma crítica social do que a própria objetificação em si, isso quando tratamos de produções feita pela própria mulher. A sociedade, mesmo que lentamente vem observando mais tais provocativas sociais. Não há como não entender, pois há inúmeras produções intelectuais negras sobre esse contexto. E dizer o contrário disso é desqualificar essas produções importantes”, afirma Dalila.

Um dos nomes femininos que vem quebrando os paradigmas sociais do funk carioca desde o início dos anos 2000 é a Tati Quebra Barraco. Mulher negra, gorda e periférica, ela sempre diz o que pensa sem papas na língua, colocando a liberdade sexual feminina em pauta.

  Nova safra MC Tha é um bom exemplo dentro da nova safra brasileira de cantoras negras empoderadas. Nascida e criada na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, ela canta desde os 15, mas só investiu de fato na carreira de MC ao 22 anos. No vídeo “Bonde da Pantera”, a artista aposta na imagem de meninas que fogem dos padrões estéticos dos clipes de funk cantados por homens, que são em sua grande maioria brancas. Nos clipes tradicionais, na maioria das vezes, você não vê as meninas que transitam pela quebrada em dia de baile, o que você vê são modelos contratadas. É extremamente importante mostrar a beleza das minas da periferia e as suas diversidades. Acredito que isso seja inspirador pra quem assiste para se reconhecer nele e entender que você faz parte disso”, conta a artista. Uma das novas queridinhas do pop é a cantora Iza. Além de esbanjar simpatia e sensualidade, ela faz questão de usar longas box braids, as famosas tranças, em seus videoclipes. No continente africano, cada tribo tinha uma trança diferente, símbolo de status e diferenciação. Sendo considerada uma “cria” da Tati Quebra Barraco e tendo nascido no Morro do Preventório, a Mc Carol, de 24 anos, chegou a pouco tempo colocando o dedo na ferida de muita gente. Apesar de não possuir muitos clipes, ela ficou famosa nas redes sociais por criar discursos que representam outras mulheres da periferia que são negras e gordas. Um caminho para a mudança Para a diretora geral da VEVO Brasil, Fátima Pissarra, o aumento do protagonismo das mulheres em videoclipes é uma realidade. “No sertanejo, temos muitas mulheres cantoras surgindo de uma época pra cá. Então, acho que com certeza as mulheres estão mais empoderadas para serem o que elas quiserem e isso inclui cantar, o que contribui para o surgimento de novos nomes”, afirma. Os dados confirmam a fala de Fátima. Segundo estudo realizado pela Crowley Broadcast Analysis, em 2017 as 19 cantoras que estavam no ranking das 100 músicas mais tocadas nas rádios eram brasileiras; enquanto que em 2013 eram apenas 4. Tal pesquisa aponta uma maior ocupação por parte das mulheres no cenário musical. Mesmo com a popularização de ideias feministas, a sociedade ainda é um tanto conservadora e uma mudança não passaria apenas pela transformação da indústria fonográfica, já que as raízes do machismo são muito mais profundas e atingem toda a nossa estrutura social. Fátima completa: “Na minha opinião, ainda tem a ver com a posição da mulher na sociedade como um todo. Isso mudando, certamente teremos transformações em todas as esferas, incluindo música e videoclipes”.