×
matilda — 27 de março de 2019

VICENTE PERROTTA E A REVOLUÇÃO DO CORPO

Vicente Perrotta não existe no singular. Durante as mais de duas horas de conversa, a mana, que se define como uma travesti não-binária, falou poucas vezes sobre si mesma sem se colocar na perspectiva coletiva do espaço que ocupa. Esse espaço, físico e subjetivo, é uma construção constante de Vicente para a destruição da hegemonia. O que é hegemonia? “É você ser um corpo branco e cisgênero. Melhor ainda se você for homem porque você vai estar lá em cimão”, explica.  

A desconstrução do gênero binário começou para Vicente em 2013, quando ela saiu de casa e ocupou um prédio na moradia estudantil da Unicamp, em Campinas. “Quando eu cheguei aqui eu não era uma não binária, eu era um viadinho binário. Mas só que eu era mais do que um viadinho, eu era uma bichona, mas ainda performava questões masculinas. Aí eu conheci uma mana que era estudante de artes e a gente começou a ter experiências de gênero juntas. E eu comecei a transicionar, sair daquele local que me colocaram no mundo, da bicha”, conta. Na época Vicente já trabalhava como estilista mas, segundo ela mesma, ainda fazia uma moda binária.

A ocupação de um espaço público e todas as experiências que aquele local não privado e livre de introjeções lhe proporcionaram também começaram a transformar a sua arte. “Quando eu sai da minha casa, eu deixei essa história de bicha homem pra lá, saca? Aí a minha roupa começou a se transformar também. Junto com essa transição do meu trabalho veio a minha transição, e comecei a fazer as roupas não-binárias“, completa.  

“Eu vejo que é a cura pela arte mesmo. A arte é a vida também, é política, são relações. Quando se fala de um corpo político, a gente é atravessada por várias questões. Questões que amarram a gente e questões que temos que desamarrar”

  A marca de Vicente, a VP, produz roupas não-binárias através do upcycling, ou seja, tudo é criado a partir de alguma peça que já existe, flertando com a precariedade e a desconstrução. “Cada peça de roupa que eu cortei, meu corpo também foi despregando aquilo. Quando eu cortei uma roupa masculina e fiz uma roupa que não tem gênero, eu fui desamarrando aquilo em mim também”, conta. A VP estreou na Casa de Criadores em novembro de 2018 com um desfile-manifesto em defesa do corpo trans, e já se prepara para a próxima edição do evento, que acontece em junho.  

“A roupa é construída para um padrão, ela tem medidas padrão que eu acho um absurdo porque os corpos não são iguais”

 

Ateliê TRANSmoras

A potência de todas as vivências de Vicente no espaço público foram organicamente transformando o espaço em um local de acolhimento. O Ateliê TRANSmoras é um local que acolhe e discute a invisibilidade dos corpos LGBTQIA+, e a ressignificação do discurso hegemônico, patriarcal, CIS, higienista e excludente. “Acolher não é só uma questão de morar. Muita gente passou por aqui e saiu se entendendo melhor como gênero. Eu sempre fui acolhedora mas essa questão de estar em um espaço público, a galera não tem noção que você pode fazer tudo aqui. Viver, tirar seu sustento, descobrir outras sexualidades, gênero. Daí eu pensei: A galera tá fudida, a gente sempre esteve fudida. Porque eu vou estar em um espaço público sozinha? Não faz sentido. Acolher pra mim é isso”, completa.

“Não acolher é o que todo mundo vai fazer. O povo quer é que você se foda. A galera quer deitar na cama e dormir, não quer saber se você precisa comer, de um canto para ficar, de dignidade”

  O ateliê é o espaço físico onde acontecem todas as construções (e desconstruções) coletivas entre Vicente e todas as manas que passam por lá. “Quando eu vou fazer um desfile, é um desfile que eu construo com várias manas, construção coletiva. O desfile não é mais meu, não é mais da minha marca, é de todo mundo que construiu aquilo. Isso é acolher porque você vai criando possibilidades para outras travestis, trans, que ninguém faz”.