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matilda — 9 de abril de 2019

Neon Cunha: “Que privilégio a branquitude abre mão para que as pessoas negras avancem?”

Neon Cunha atua há 37 anos na prefeitura de São Bernardo do Campo. A trajetória da publicitária começa bem cedo, aos 13 anos, trabalhando como mensageira do local. Ao longo de uma carreira que ela classifica como uma das coisas mais violentas da sua vida, chega ao posto de Diretora de Arte da área de comunicação, onde está até hoje.

Formada em publicidade no ano de 1988, Neon define a sua caminhada no trabalho formal como “a negação da negação da negação”. “Eu nunca fui contratada por nenhuma agência. Hoje eu presto consultoria para um monte de gente, mas eu não lembro de ser contratada por uma agência”, completa.

 

 

Mulher, negra, ameríndia e transgênera, ela conta que manteve seu emprego na prefeitura de São Bernardo por conta do afeto e cuidado que tem pela mãe, mas também pelo completo entendimento do sistema de exclusão da população negra. “Eu tinha dois caminhos: a prostituição e abandonar uma mãe a qual sou muito ligada, ou entender que mulheres pretas são executadas nesse país. Se eu estou lá é porque eu tenho essa relação de afeto imenso assim. As humilhações, as perseguições, o processo de exclusão e manter-se no emprego por tanto tempo é para poder ter uma sobrevida. Acho que pela exclusão social você entende a necessidade de permanência na menor das estruturas para realmente não depender de ninguém, porque você já sabe que a negação já está colocada”.

 

O emprego formal de Neon divide espaço com a sua atuação em diversas outras frentes. Formada também em Artes Plásticas, trabalha com moda há anos e atualmente colabora com o estilista Isaac Silva (é dele o vestido que Érica Malunguinho usou na posse da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – Alesp). Ativista independente, tem como pauta principal a racialidade como construção de não humanidade. Participa de palestras (que prefere chamar de troca de conhecimento), debates e rodas de conversa com a sociedade civil, empresas e órgãos governamentais e não governamentais.

No dia 14 de março, Neon recebeu da Alesp a Medalha Theodosina Ribeiro, que homenageia mulheres que se destacam na sociedade. Além disso, se dedica a pesquisar sobre o imagético do invisível e tem feito outros trabalhos de forma independente, sempre que possível, envolvendo a população de rua e encarcerada, além do tráfico de pessoas.

Neon é uma mulher que produz constantemente, conciliando seu emprego formal e causas, sempre buscando reflexões mais profundas sobre o sistema que a cerca. Ao ser questionada sobre como a sociedade pode deixar de dissociar trabalho e produzir de forma criativa com os seus propósitos, Neon devolve. “Acho que a pergunta é outra. Quando você deixa de ser (criativo)? Quando você deixa de pensar em um processo humanizador. E aqui não é aquele discurso da meritocracia ou do vitimismo. É um discurso sobre a consciência da produção de elevação”, diz.

O tempo todo e de forma provocadora, ela nos convida a aprofundar na subjetividade das escolhas — muitas vezes automáticas — feitas dentro de uma sociedade opressora e falocêntrica.  Acredita no pensamento decolonial como ferramenta para entender as instituições e todas as manobras para a constante manutenção do poder e dos privilégios em todas as esferas, o que inclui o sistema de trabalho formal. “Qual é o privilégio que a branquitude abre mão para que as pessoas negras avancem? Qual é o privilégio que a cisgeneridade abre mão para que pessoas trans avancem? Qual privilégio que o macho branco cis heteronormativo abre mão para que todas as mulheres avançam? É reconhecer esse lugar de privilégio”, completa.