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matilda — 15 de maio de 2018

LUIZA E O MENINO QUE NÃO SABIA CHORAR

Luiza Pannunzio é uma mulher tão real que às vezes o mundo pode não compreendê-la tão bem. Mãe de Clarice e Bento, empresária, ilustradora, estilista, criadora da ONG As Fissuradas e totalmente fora do eixo, ela vem reescrevendo tudo aquilo que a vida lhe impôs como o único caminho certo. Tudo aconteceu de forma muito rápida. Há poucos dias de dar a luz, depois de uma gestação tranquila, Luiza descobriu que a chegada de Bento não seria tão simples assim. Nenhuma experiência prévia em sua vida a havia preparado para o que estaria por vir. “Quando você engravida, primeiro existe a romantização da gravidez, né? Você quer ter aquela criança e pede para que ela seja saudável. Essa noção da má formação não passa pela nossa cabeça, e não passava pela minha, pelo menos, porque eu era uma mãe jovem, saudável, casada com um cara da minha idade que também era saudável”. Bento sequer havia sido apresentado ao mundo e Luiza já se preocupava em como o mundo veria seu filho. “Você não pensa que o negócio pode dar errado. Dar errado é isso, você tem um filho que não nasce do jeito que a sociedade espera que ele nasça e nem você. Isso te deixa despreparada, porque ninguém espera que isso um dia vá acontecer com você”. Ao final dos 9 meses, o filho de Luiza nasceu com fissura labiopalatina, uma anomalia congênita na face que atinge uma a cada 700 crianças no Brasil. A fenda acontece sempre no lábio superior, podendo ser apenas uma fissura quando é unilateral, ou bilateral quando são duas fendas. Em alguns casos, ela se restringe apenas aos lábios, em outros mais graves chega até a gengiva, o maxilar superior e o nariz. Bento nasceu sem o céu da boca e a fissura alcançava até o canal lacrimal do olho direito, daí a licença poética de “o menino que não sabia chorar”. “Até hoje nós temos muitas questões com esse olho direito, se o olho funciona ou não e o quanto ele funciona, porque a gente não consegue saber isso”, afirma Luiza. Logo após o nascimento do menino, Luiza e seu marido decidiram por fazer o primeiro procedimento cirúrgico. Porém, o que ninguém explicou, é que ela ficaria um tempo longe dele. “Eu fui carregar o Bento 15 dias depois que ele nasceu. De tantas causas que As Fissuradas lutam, uma delas é para a humanização maior entre médico e mãe de uma criança com fissura. A mulher é tratada de uma forma desumanizada desde a hora que nasce, quem dirá na hora de dar à luz”. A caminhada para uma criança fissurada é longa. “O tratamento leva 20 anos e as cirurgias são inúmeras, porque são muitas correções: grandes, pequenas, cirurgia de 6 horas, de 10 horas, de 12 horas… Normalmente aos 25 anos eles têm alta do tratamento, porque é uma má formação craniofacial, os ossos da face vão crescer e o problema tende a se mostrar conforme eles forem crescendo”. Mesmo com todos os cuidados que Bento precisa, Luiza reitera a importância de entender e aceitar seu papel na situação do filho. “Eu falo que o Bento não nasceu meu, ele nasceu indivíduo. Eu fiquei ali torcendo pra ele sobreviver e falei ‘bom, vai aí, porque se eu não posso nem te carregar, quem dirá o resto?’ E eu até brinco dizendo que ele me ensinou a rezar, porque não tinha mais nada para fazer”, conta. A artista não concorda com a ideia de que ter uma criança com necessidades especiais é um presente. Direta, ela procura tratar o assunto de forma racional: “Eu não acho que foi uma dádiva de Deus, nem que as coisas que acontecem ou o destino sejam bons. Acredito que houve ali uma confusão genética, rolou essa questão e eu vivo para resolvê-la. Mas eu não acho positivo pra mim, nem pra ele”. É com esse senso de realidade que Luiza mostra para outras mães na mesma condição que está tudo bem em não achar a aparência da fissura bonita. “Ele é o grande amor da minha vida, mas gente, eu fiquei muito insegura. Eu sinto muito amor porque é meu, mas assim, era uma fissura bem grande. É difícil pra você olhar sendo mãe, imagina para o resto das pessoas? Imagina no hospital? Eu sempre fui muito didática, porque cada vez que eu falava, eu ouvia e aceitava. Mas assim, não é todo mundo que consegue lidar”. Nessa jornada “fissurada” pela procura de fazer com que essas pessoas sejam vistas e ouvidas, Luiza conta com o apoio de seus filhos Clarice e Bento. “Todas as ações que hoje fazemos com As Fissuradas, seja ela ir ao hospital da Ilha do Governador no Rio de Janeiro, que é um hospital em frente à favela da Maré, um dos mais pobres que eu já entrei na minha vida, os meus filhos estão comigo. Eles ficam vendo, participando, ajudando, pintando, arrecadando, doando, mas eles estão sempre comigo”. As Fissuradas Em 2014, após a terceira cirurgia de Bento, Luiza usou as suas palavras e desenhos para construir pontes entre a situação vivida e o mundo. Assim surgiu o blog As Fissuradas. Foi ali que a artista começou a falar sobre como era ser “fissurada” em uma criança com condições especiais, compartilhando com o mundo as suas experiências, e colaborando para tirar o assunto da invisibilidade. “Costumo dizer que é toda uma situação de pessoas invisíveis que a gente nem olha, porque muitas vezes elas não têm grana ou falta emprego. Elas não estão no supermercados, nos cinemas e nem na rua pedindo esmola, mas elas existem e eu sei que elas existem.” A página no Facebook do grupo conta com mais de 20 mil curtidas. No final do ano passado, As Fissuradas se transformou em uma ONG e em julho deste ano organiza o I Congresso da rede As Fissuradas, em São Paulo. Na solidão da maternidade, Luiza encontrou refúgio tanto nas palavras que deram origem para As Fissuradas, como também em desenhos. Dos seus traços nasceu também o menino que não sabia chorar, personagem totalmente inspirado em seu filho. O sucesso foi tanto que seu menino virou peça e em julho desse ano, o livro será lançado. “Na verdade o problema é esse e a gente precisa falar mais. Vivemos em uma sociedade em que não se fala muito dos problemas, mas falamos das realizações. E tem aquela coisa da beleza também, né?”, revela. Muito além das fissuras Além da sua atuação como mãe de uma criança fissurada, Luiza possui um ateliê de roupas um tanto diferente. Lá não existem tamanhos P, M ou G, muito menos roupas vendidas sem nenhuma causa, porque para ela a roupa também pode ser uma luta política e social. “Eu mudei a etiqueta porque eu tinha uma cliente bem maior do que eu e ela ia na minha loja e falava ‘eu uso M’. Só que ela é duas vezes maior do que eu. Então eu dei algumas peças maiores para ela e não falei o tamanho. Então, eu mudei as etiquetas e coloquei linda, maravilhosa, sensacional e exuberante. Agora as mulheres estão enlouquecidas dizendo ‘ah eu sou exuberante? eu sou mesmo’, e virou outra coisa”, revela Luiza. Ilustradora, Luiza também empresta seus traços ao projeto Conte Para Alguém. Em parceria com a psicóloga Thais Laham Morello, ela desenha histórias de casos reais de abuso na infância, com o objetivo de incentivar mais pessoas a denunciarem seus abusadores. O projeto virou um livro e tem ajudado muitas pessoas a enfrentarem seus monstros do passado. Como tantas outras mulheres, Luiza não enxerga a maternidade como um conto de fadas. A vida lhe trouxe desafios e ela os encara com um amor genuíno por sua prole e um grande desejo de transformação. Transformação essa que ultrapassa os limites do seu lar, atingindo também a vida de outras mulheres e famílias que compartilham da mesma realidade. “Vivemos nesse embate de ‘o que eu estou fazendo aqui?’. Eu estou aqui para fazer essa ponte. A vida me deu isso, de que estou aqui para fazer algo, então eu sou essa ponte entre o público e o privado”.