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matilda — 19 de junho de 2017

FAMÍLIA É COISA DE NOVELA

Os brasileiros adoram suas telenovelas. São parte de sua memória afetiva, alvo de apostas, torcida e movimentam a economia de maneira indireta. Embora com menos força nos últimos anos, alguns hits recentes conseguem ganhar a atenção do espectador na disputa com os dispositivos móveis: em tempos de embates políticos, há quem arrisque brincar que o sucesso Avenida Brasil (2010) foi a última vez que a nação esteve tão unida por uma causa. Intrinsecamente ligadas em origem às suas homólogas latino-americanas, as novelas daqui, aos poucos foram criando suas características próprias, que acompanham a evolução da nossa sociedade e servem como um registo de como o pensamento coletivo evoluiu ao lado das transformações políticas e econômicas do país.

Da era do rádio às primeiras iterações pré-videoteipe e o renascimento pós-ditadura, a família — em todos os seus formatos e composições — muitas vezes é o cerne da maioria dos enredos. Relacionamentos não-funcionais, brigas de ego, traições, revelações de paternidade e outros clichês mantém as tramas interessantes e sedutoras, apelando para sentimentos que nunca saem de moda. Nesse formato, o núcleo familiar é quase um laboratório de experimentação. Nos últimos 40 anos, a influência da novela no comportamento do brasileiro deixou marcas tão fortes quanto a redução da fertilidade em décadas passadas(1) (causada pelo crescente hábito de ver TV em família, pondo o sexo em xeque) e a ressignificação do papel da mulher no lar, que passou a se inserir no mercado de trabalho e enxergar nas personagens bem-sucedidas modelos possíveis e desejáveis.

Com o passar do tempo e a competição de outros meios de difusão do entretenimento, a influência dos dramas televisivos se tornou menos profunda, mas ainda vista em tendências de moda e bordões que saem das telinhas direto para as ruas — uma interferência em curtíssimo prazo na cultura de massa. São as  mudanças dos padrões morais e sociais do Brasil que veem seus reflexos na telinha, porém. A Grande Família — ainda que embalada como seriado — é um produto que exemplifica essas transições de forma emblemática. Seu último reboot teve uma trama linear que durou entre 2001 e 2014, período em que o Brasil sofreu algumas das suas mudanças mais significativas. Entre divórcios, nascimentos, fracassos e ascensões sociais, a trama de Guel Arraes andou lado a lado com o cenário nacional.

Alexandre Borges, Camila Morgado, Débora Bloch e Carolina Ferraz viviam um “quarteto amoroso” androcêntrico (e deveras constragedor.)

O bloco das 20h (posteriormente 21h) da Rede Globo, maior player do segmento, sempre foi o estado da arte para esse gênero de ficção, e é nele que se observam alguns dos títulos mais marcantes. Clássicos do autor Manoel Carlos como Laços de Família e Mulheres Apaixonadas, por exemplo, são fruto do delírio coletivo do começo dos anos 2000 — entre a clínica e o clube — e contrastam com a “nova classe média” de Avenida Brasil ou Salve Jorge. Em 2010, na supracitada Avenida Brasil, assinada por João Emanuel Carneiro, o poliamor — tabu na vida real — via na obra ficcional um espaço cômico e com direito a final feliz. A TV aqui desperta o imaginário ensaiando — muitas vezes com a mulher sendo a cobaia — situações que desafiam o status quo.  

Não chega a ser surpreendente o fato de que o maior produto de entretenimento de uma nação que flerta com moralismos insustentáveis seja o que mais distorce os padrões tradicionais de família nuclear. O folhetim é um alívio cômico para realidades constrangedoras, equilibradas numa linha tênue entre o que gera identificação e um certo nível de exagero, mas sempre acontecimentos tangíveis que o brasileiro médio, do alto da sua moralidade prefere experimentar na segurança da ficção.

Os ciclos de conservadorismo e liberdade de pensamento sempre se viram nas telas. Em 1989, num Brasil pós- ditadura, a TV dedicara quase 8 minutos num discurso a favor da diversidade. Tieta, uma mulher que vivia um caso de amor com seu próprio sobrinho, provocava a moral e os bons costumes num discurso pró-diferença que parece ainda não ter sido assimilado pelo coletivo até mesmo nos dias atuais. Na trama, Rogéria interpretava uma travesti, amiga da protagonista. Trocando em miúdos, talvez esse seja uma das razões pelas quais a telenovela mexe tanto com o imaginário nacional. É baseada em valores que, infelizmente, crescemos naturalizando: um tiquinho de culpa, uma incursão ao proibido, a figura da mulher como aquela que ousa, trai e calcula, e a contradição de um moralismo que tempera tudo. A família, como base convencional das relações humanas, não poderia ficar de fora.

Uma linha do tempo de como a novela experimentou com a família desde o começo do milênio


Fontes: http://www.intervozes.org.br/direitoacomunicacao/?p=21522