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matilda — 14 de agosto de 2019

Dona Jacira, uma verdadeira griot

O caminho de buscas e negações da escritora, artista plástica e artesã 

“Eu sempre fui escritora”, foi a resposta de Dona Jacira sobre quando ela começou a escrever. Desde menina, no colégio de freiras onde estudava, fazia redações tão boas e acima da média da turma que a professora desconfiava da sua autoria. 

Na emblemática redação sobre “o que você quer ser quando crescer”, a Jacira, de apenas 10 anos de idade, escreveu que iria ser como as suas professoras, e foi além. Ela narrou todos os preconceitos que havia sofrido dentro da escola naqueles quatro anos. Foi quando a diretora convidou-a a sair. Sim, ela foi expulsa da escola. Como uma criança poderia imaginar que as suas palavras tinham o poder de incomodar outras pessoas?

Jacira carregou consigo esses traumas da sua infância causados pela escrita. E ao longo do caminho procurou outras formas de expressar a sua arte e tudo que estava à sua volta. Ao mesmo tempo em que muitos dedos apontavam para sua direção, dizendo o que ela deveria ser e fazer da sua própria vida.

Capricorniana, decidida, de gênio forte, nasceu no dia de natal, em 1964. Filha de Dona Maria Aparecida e seu Estácio, que veio a falecer pouco antes do nascimento da caçula do casal. Cresceu na Zona Norte de São Paulo, no Jardim Ataliba Leonel, e hoje mora no Jardim Cachoeira, na mesma região. 

Sabe muito bem como é viver na periferia, como ela mesma nos disse, “você pode ver que chegar aqui é difícil, sair daqui é muito difícil também”. E essa sabedoria serviu para criar os seus quatro filhos: Katia, Katiane, Evandro (Fióti) e Leandro (Emicida), rapper que dedicou a ela a música “Mãe”. 

Para conhecer melhor toda a excentricidade de Dona Jacira, fomos até a sua casa ter a experiência de estar frente a frente a uma griot, uma verdadeira contadora de histórias, especialista em narrar os acontecimentos da vida. Em sua casa, que ora funciona como um centro cultural, há objetos artísticos em todos os cantos, feitos por ela e outros artistas parceiros. 

                                 

 

O fascínio pelas letras

Seus primeiros contatos com a arte se deram através de sua avó, que bordava e costurava à mão. Sua mãe também era costureira, trabalhava sob encomendas, fazia bordados específicos, como o ponto rococó. “Achava tão bonito aquilo, mas tão distante de mim”. 

Quando era mais jovem, Jacira passava as tardes de verão bordando sentada na calçada, com as outras mulheres do bairro. Como ela bem lembra, “era o que tinha de oportunidade de mercado naquela época”. 

“A referência (artística) era de todas as mulheres ali, de tecer e se envolver com os fios. Mas o fascínio mesmo era com as letras, pelo desenho, aquilo que vinha na minha cabeça eu queria escrever. Meus textos sempre tiveram princípio, meio e fim”.

Quando começou a bordar panos de pratos, seus bordados não eram nada convencionais. As imagens que criava eram o retrato da sua realidade, como se fossem um manifesto. “Meus panos de prato eram políticos”. Como não conseguiu vender sua arte em forma de panos de prato, ela guarda alguns até hoje, e um deles ganhou até moldura. Intitulado de “Sagrada Família”, de 2013, é o retrato de uma grande família negra em frente a uma casa humilde. 

“As minhas amigas quando viam os meus panos de prato falavam: Por que você gosta só de desenhar essa coisa de preto, da periferia? Isso é muito ruim”. 

 

Seus sonhos foram silenciados por um bom tempo, até que decide retornar à escola aos 26 anos para concluir os estudos e se dar uma segunda chance. A parte artística ainda ficou muito reprimida. A falta de referências fora de um contexto branco elitizado no mundo das artes e da cultura foi o fator principal de limitação. E mais uma vez, ela tentou calar a sua intuição, mesmo não sabendo que era uma intuição. A sua cobrança por fazer algo a mais vinha de dentro. Até que resolve encarar a vida política e encontra o seu direito e lugar de fala. 

“Eu sempre fui escritora. Desde quando?

Eu não sei… Desde quando eu era criança”. 

Dona Jacira lutou contra seus traumas e, por fim, deixou sua intuição falar mais forte. Desde então, escreve as suas lembranças, coloca no papel a sua trajetória vivida em vários mundos divergentes. Sua autobiografia revela passagens da infância, da adolescência, de seus filhos e do cheiro do café (daí o nome de seu primeiro livro, “Café”). Todo um universo transformado em poesias de uma forma única, o jeito Dona Jacira de ser e se expressar. E vem mais livros pela frente! Ela está na produção dos próximos, reunindo materiais e escrevendo mais versos sobre paixão, conhecimento e histórias das suas netas.   

Por muito tempo 

Tentaram me desconstruir 

E me afastar da terra. 

Mas eu sou filha da terra

Eu nasci da terra

Eu sou terra

E todo filho da terra, ele é terra até morrer

E vira terra

E por ser filha da terra, 

Afastada da terra 

Eu só penso na terra

Não tem como separar.

 

(Dona Jacira)