×
matilda — 1 de fevereiro de 2019

DA PENITENCIÁRIA À QUEBRADA SUSTENTÁVEL

“A favela é o quarto de despejo da cidade”. A dura metáfora da escritora Carolina Maria de Jesus estampa um dos muros da comunidade União de Vila Nova, no extremo leste de São Paulo. Carolina era catadora e registrava o cotidiano da favela do Canindé, onde morava, em cadernos que encontrava no lixo.

Favela do Canindé e União de Vila Nova se assemelham: ambas têm histórico de abandono e precariedade, com lixões a céu aberto e pessoas vivendo em situação de extrema miséria. Mas hoje, graças a projetos de infraestrutura e urbanização, as coisas mudaram. A primeira já não existe mais, e a segunda foi totalmente reconstruída.

Antes conhecida como “Jardim Pantanal”, a União de Vila Nova era um dos bairros mais violentos da capital, com altos índices de homicídio. A comunidade tem mais de 30 anos, mas praticamente renasceu em 2002, através da comunhão entre poder público e membros da sociedade civil, entre eles o ex-detento Antônio Hermes de Sousa.

Adepto à ideia de arte como ferramenta de transformação social, Hermes percebeu o potencial dos moradores que viviam da coleta de material reciclado e decidiu atuar na região. Antes mesmo do processo de urbanização do bairro, criou o Instituto Nova União da Arte (NUA) e estabeleceu uma parceria com a Associação Novolhar para promover o desenvolvimento social e econômico da comunidade.

Três projetos de sua ONG viraram modelo para outras comunidades: o Flor de Cabruêra, a Escola Debaixo da Ponte e a Quebrada Sustentável, todos com foco em educação ambiental, arte e reciclagem para crianças e adolescentes.

 

Dez anos preso

 

Nascido no Ceará, Hermes migrou para São Paulo aos 16 anos em busca de melhores condições de vida. Ele conta que seu pai tinha uma fazenda no interior, mas que acabou perdendo tudo durante a crise econômica do governo Collor. “Meu pai vendeu a fazenda achando que eu não me acostumava mais na roça. Ele depositou o dinheiro na poupança uma semana, e na outra não tinha mais nada”.

“Eu vi meu pai falecer por conta do Plano Collor, só esqueci que eu roubando ia pra cadeia, e ele [ o Collor ] ia pra Flórida”.

Sem dinheiro nem trabalho, as coisas não foram nada fáceis na selva de pedra. Morou em cortiços na região central e se envolveu com cocaína e crack aos 25 anos. Logo começou a roubar e traficar, e acabou debaixo do Minhocão. Tornou-se chefe de quadrilha e dependente químico. Passou por nove presídios e fugiu de seis, totalizando dez anos preso.

 

A revelação

 

O tempo que passou na cadeia foi, segundo ele, uma escola. Aproveitou para ler bastante e descobriu seu talento para a arte. Em um dia de abstinência, após muitos anos usando crack, viu num pedaço de madeira a cabeça de um cavalo. Pegou um cortador de unha e começou a entalhar o material. Depois de um mês, estava lá o busto do animal, como ele havia imaginado.

“As pessoas começaram a olhar para mim com um outro olhar. Com essa cabeça de cavalo eu montei a minha primeira oficina de artes dentro do presídio, sem saber fazer arte, mas juntar pessoas é uma arte. E quando você junta pessoas e tem uma escuta, você constrói o que você quiser”.

Limpo e já em regime semi-aberto, Hermes se dedicou à arte-educação com escultura e entalhe em unidades da antiga FEBEM, atual Fundação CASA do Estado de São Paulo, em 2000, até que sua história se entrecruzou com a história da União de Vila Nova. Sua fé o faz acreditar que foi uma Revelação.

Ele narra a história: “Certo dia eu estava na igreja e saiu uma palavra que era assim: ‘Livra os que estão destinados à morte e salva os que são levados para a matança, se os puderes retirar’, e aquilo me deixou incomodado a noite toda. No outro dia eu cheguei aqui [ na comunidade ] e um rapaz começou a me falar do histórico de violência desse lugar. Já chegou a ter 11 pessoas mortas em um dia por aqui, era um lugar extremamente violento. E eu pensei: ‘não, eu não quero ficar aqui, isso aqui não é de Deus, ficar dentro de um lixão’. E depois eu entendi que Deus me queria aqui”.

Mesmo sem ter vínculo algum com o bairro, decidiu começar um trabalho dentro do lixão. Passou a realizar suas oficinas de escultura no local, recolhendo pedaços de madeira entre os dejetos.

“O único lugar que poderia receber um lixo era outro lixo. Depois de 10 anos de prisão, 10 anos viciado em crack, as pessoas só te veem como o lixo da sociedade. E o lixo da sociedade vai parar onde? Dentro do lixão”

Desde então, mora na comunidade com sua esposa e parceira de trabalho, Maria José, e com os dois filhos deste casamento.

Projetos com-unidade

 

Apesar de nunca ter estudado Ciências Sociais ou Engenharia Urbana, Hermes desenhou um projeto grandioso para a União de Vila Nova, com a ajuda de seus habitantes. “Uma coisa que a gente entendeu aqui é que só se faz comunidade com-unidade. Muitas vezes a gente tem a presunção de chegar e falar ‘vamos fazer os projetos’. Não, os projetos já estão lá, talvez a gente faça alguma coisa junto”.

Juntando lideranças, conseguiu intervir em todo o projeto da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), mostrando a necessidade não só de construção de casas, mas também de áreas de lazer e escolas.

Com o NUA, criou o Flor de Cabruêra, projeto de confecção de bolsas e acessórios ecologicamente corretos, feitos a partir da reutilização de banners, cinto de segurança e outros materiais, gerando renda para as mulheres da comunidade.

Em seguida veio a Escola Debaixo da Ponte, conceito inovador que já é bem-sucedido em favelas de Nova Deli, na Índia. Na escola improvisada debaixo da ponte de uma linha de trem acontecem oficinas de dança, percussão e grafite, e a ideia é que o espaço ganhe ainda uma biblioteca comunitária e um muro da gentileza. A sede da escola é também a sede do NUA, que atende de 150 a 200 crianças por dia.

Próximo à Escola está um dos projetos mais incríveis desenvolvidos pela ONG, o Ponto de Cultura Socioambiental Quebrada Sustentável, um espaço verde em que se pratica permacultura, onde antes era um lixão. Criado em 2014, ele tem o objetivo de capacitar jovens para serem facilitadores ambientais e criarem uma rede que vise o desenvolvimento e preservação ambiental nas comunidades. O modelo agora está sendo aplicado em Suzano e Guarulhos.

 

Desenvolvimento humano

 

Hermes não é o único agente transformador da União de Vila Nova, tampouco se sente confortável na posição de benfeitor. Humilde, gosta sempre de ressaltar o quanto nada disso seria possível sem o empenho da própria comunidade, que, segundo ele, é bastante proativa. Além disso, acredita que o primeiro passo para uma mudança mais profunda é as pessoas mudarem o seu olhar sobre pessoas e áreas carentes.

“Eu tenho aprendido muito com um educador mineiro chamado Tião Rocha, que era professor de uma universidade e largou tudo para dar aula para as pessoas embaixo de um pé de manga. Ele fala sobre como o poder público mede muito a vulnerabilidade, os riscos, o índice de desenvolvimento humano (IDH), e como a gente precisa chegar numa comunidade como essa e medir o índice de potencialidade de desenvolvimento humano. Precisamos enxergar o que as pessoas têm de potencialidade”