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matilda — 18 de abril de 2019

Vida e arte de um corpo limítrofe

Conheça Enantios Dromos, o artista que ressignifica diariamente a sua própria existência

Uma grande força em uma direção gera uma força no sentido oposto. Essa é a definição do termo Enantiodromia, criado pelo filósofo Heráclito e aplicado por Carl Jung como um processo de compensação. Segundo o psiquiatra, quanto mais o consciente pende para o extremo, mais o inconsciente usa da força contrária para compensar a polarização.

O conceito nada simples é o ponto de partida para a criação da persona Enantios Dromos. Nascido em Bagé, interior do Rio Grande do Sul, o artista de 21 anos transita entre tempos, gêneros e espaços na eterna busca por sua verdade. “É uma busca de saber quem eu sou, de entender o que eu estou fazendo aqui, o que eu estou causando, o que as pessoas estão me causando, onde a gente se encontra e onde a gente se desencontra”.

A Matilda foi até a casa em que mora com pelo menos outros três ou quatro amigos artistas na Vila Buarque. Fomos mais precisamente até seu quarto — que funciona como um templo artístico — para entender de onde vem as múltiplas camadas que extravasam a sua obra.

 

 

 

Futuro do passado do presente

 

Adentrar o universo de Enantios é acessar memórias e estéticas que estão sendo constantemente ressignificadas em sua vida-performance. Tecidos, roupas, bonecas, imagens religiosas, brinquedos sexuais…Suas referências estão espalhadas ordenadamente pelo quarto, compondo uma decoração extremamente peculiar. Tudo está acessível aos olhos e pode virar insumo para suas experimentações.

Fruto de uma geração altamente criativa e superconectada, Enantios habita o tempo como um agora em que passado e futuro se fundem para dar vida ao novo. “A informação que a gente quer passar é pós, é futuro, mas é sobre passado também. Tudo o que eu falo é sobre passado, é sobre nascimento, renascimento. Principalmente nesse processo de transição e ressignificação da minha própria existência, eu fico tendo que voltar o tempo todo”.

O constante retorno é para sua cidade natal, onde viveu até os 18 anos, cercado de influências femininas. Foi criado por sua mãe, sua avó e sua bisavó, uma benzedeira bastante conhecida na região e que faleceu aos 97 anos. É da sua aura de “cigana-bruxa” que vem a profunda relação de Enantios com a tensão entre sagrado e profano.

 

Imagens religiosas permeiam o universo particular de Enantios Dromos, que se apropria constantemente da cultura gaúcha para compor seu visual que flerta com o exagero

Imagens religiosas permeiam o universo particular de Enantios Dromos, que se apropria constantemente da cultura gaúcha para compor seu visual que flerta com o exagero

 

A estética da precariedade

 

A precariedade é a forma escolhida para expressar esse presente desconexo e não linear. Ele converte em instável aquilo que parece fixo e seguro, traçando uma narrativa de confronto e aperfeiçoando uma estética considerada suja.

“Na minha cidade tudo era muito precário, muito destruído. Todas as paredes estão descascando, inclusive dentro da minha casa, e nisso a minha imaginação já borbulhava demais. Mas eu realmente não tinha acesso, minha família era muito pobre. Então eu comecei a observar coisas que não eram observadas, a ver beleza em coisas que eram muito feias”.

Esse exercício de se apropriar da falta de recursos e da imperfeição pode ser observado em seu Instagram (@limtrf) e em suas filmagens com VHS, em que constantemente capta trabalhos subversivos de moda e outros corpos dissidentes. Sua arte está estreitamente ligada ao registro: “Eu sou o outro e o outro sou eu”.

 

 

À margem do CIStema

 

O entendimento de corpo, talvez a parte mais importante de todo o seu trabalho, aparece como uma exploração infinita e contínua, e vem justamente dessa sede de experimentar tudo e questionar o próprio sentido das coisas.

Hoje ele se identifica como um corpo trans não-binário e vem passando por um processo de hormonização. Há cinco meses faz uso de testosterona, o que tem causado mudanças significativas no seu físico, na sua voz e, consequemente, na maneira como enxerga o mundo à sua volta.

 

“Eu não estou tentando chegar em nenhum outro lugar, eu não estou saindo de um feminino para ir para um masculino, eu estou justamente fugindo desse lugar binário. Binário para muito além do gênero, binário de tudo. O mundo todo a sua volta fala que existe uma possibilidade ou outra, quando na verdade existem muitas”

 

Enantios Dromos, um ser em constante mutação

Enantios Dromos, um ser em constante mutação

 

Mestre em manipular os códigos de vestir, aproveita para desafiar regras sociais através da construção de sua indumentária. Não à toa, trabalha lado a lado com o Estileras, ateliê criativo que desconstrói roupas usadas e questiona os padrões do mercado de moda.

 

“A moda não aceita que tu fale que a Alta-Costura é que é feia, então eu quero mais é rasgar tudo, rasgar as palavras deles, rasgar as minhas roupas, estilerizar tudo. No fim vira a união de muita coisa, tem o gótico, tem a estileragem, tem o brechó, tem a minha família, tem a minha bisavó…Sei lá, eu sou várias pessoas, às vezes eu sinto até um peso em cima de mim e isso está na minha roupa também. Tu carrega história no que tu tá vestindo”.

 

A potência coletiva

 

Esse conjunto de possibilidades criativas que Enantios Dromos performa há três anos diz muito sobre a sua vida em São Paulo e a mudança de uma situação de isolamento para um convívio intenso com outros artistas que têm identificação entre si.

A internet mostrou para eles que era possível ser diferente, mas foi o encontro físico que propiciou a união de diversas potências. Idiossincrasias individuais que juntas compõem a arte coletiva dos nossos tempos. Essa junção ficou evidente na performance criada pelo Brechó Replay na SP-Arte/2018, da qual Enantios fez parte.

 

 

“Todo mundo tá sentindo muita raiva, todo mundo tá sentindo desconforto, tá todo mundo querendo mudar muita coisa e a gente sabe que não é assim, que as coisas não são tão alcançáveis. Pelo contrário, elas são bem distantes e tu tem que fazer um esforço muito grande para modificá-las. Com certeza se eu não tivesse a presença de pessoas como as que eu tenho, eu não conseguiria fazer metade do que eu faço, porque o que eu faço é sobre mim, mas é completamente sobre elas também”.

 

Enantios levará um pouco desse universo de coisas e pessoas para a Matilda Casa em maio, enquanto se prepara para passar uma longa temporada em Londres.